Autora anarquiza imposições de gênero em 4 da espécie – a história do corpo coisa nenhuma de Michelle Ferreira

Com mais de uma década de carreira, doze peças encenadas e incursões em roteiros para projetos audiovisuais como a série Entre o Céu e a Terra, a dramaturga paulistana Michelle Ferreira lança, dia 18 de setembro, terça-feira, às 20h, no Teatro e Bar Cemitério de Automóveis, seu segundo livro dramático: 4 da espécie – a história do corpo coisa nenhuma de Michelle Ferreira. O livro, lançado pela Patuá, conta com apoio do ProAC (Programa de Ação Cultural) 34/2017. O primeiro livro publicado pela autora foi Os médios – um relato de seres terrestres que pilotaram a nave de Michelle Ferreira (2016), em brochura que acompanhava o programa da peça, encenada no Centro Cultural São Paulo.

 

No lançamento de 4 da espécie, trechos da peça serão lidos pelas atrizes Flávia Strongolli, Maura Hayas, Renata Augusto e Chris Couto. Flávia e Maura integram, junto com Michelle, A Má Companhia Provoca, que deve iniciar o projeto de montagem da peça no próximo ano. Michelle oferece ainda o workshop de escrita para teatro Anarcodramaturgia – a palavra bomba e outros atentados dias 22 e 23 de setembro, sábado e domingo, das 14 às 18h, na SP Escola de Teatro. As inscrições estão abertas e devem ser feitas pelo site do local (spescoladeteatro.org.br).

 

Na nova peça, Michelle partiu da máxima de que a história como a conhecemos é uma ficção. A ideia ganhou potência durante a leitura de Uma Breve História da Humanidade – Sapiens, do professor de história e autor israelense Yuval Noah Harari. “O livro nos lembra do óbvio de que tudo na história se trata de uma criação nossa, e é esse óbvio que às vezes temos muito dificuldade de enxergar”, diz Michelle.

 

Para mudar o passado com a ficção, Michelle criou as personagens Lee Quatropani, Soni Kunder, Bibi Bibete e Jaque Martini, os 4 da espécie a que o título da peça se refere, pessoas que se conhecem e imediatamente decidem partir juntos para uma casa nas montanhas. O texto não evidencia a princípio qual é o gênero das personagens e o questionamento tensiona a relação entre as personagens e também a curiosidade do público.

 

Grampos de cabelo, arrombamento de portas, uso de mictório, flexões nominais que se alternam entre os artigos “a” e “o”, boxe e rodadas de whisky são alguns dos códigos experimentados para questionar o que foi classificado como masculino e feminino ao longo da história. Mas em 4 da espécie, nem mesmo a gravidez ou os genitais são determinantes para que as personagens permaneçam do jeito que estão.

 

“A virilidade foi incorporada ao gênero masculino há muitos séculos. O texto pretende gerar a dúvida no público do motivo pelo qual ele associa uma personagem a certo comportamento, como se tudo não fosse uma construção histórica”. Para a autora, o tema central da história é a relação de poder que se estabelece quando um gênero é atribuído a uma pessoa. “É sobre poder. Sobre quem pode conquistar coisas por algo que já faz parte de si”.

 

Eu sou um homem. Eu sei que eu sou um homem. Tudo o que eu fiz até hoje foi como um homem. Eu acordei como um homem. Vim pra cá como um homem. Eu não posso ter me tornado uma mulher de uma hora pra outra só porque vim passar o feriado num chalé nas montanhas! Isso não é real! Quais as probabilidades? Quais as possibilidades? Isso não está acontecendo! – Trecho extraído de 4 da espécie

Algumas das referências de Michelle são a filósofa e ativista feminista francesa Simone de Beauvoir (1908 – 1986), o livro Teoria King Kong, da escritora francesa Virginie Despentes (1969), o livro O Calibã e a Bruxa, da escritora, professora e ativista feminista italiana Silvia Federici (1942) e a literatura do escritor austro-húngaro Franz Kafka (1883 – 1924), cercada por metáforas sobre relações de poder, desigualdade e opressão.

 

Michelle ainda ressalta a influência inusitada do rock’n’roll para a criação do texto, identificando a partir do gênero musical as nuances de um corpo potente e dilatado que traz dúvidas sobre o que é o masculino e o feminino. “A ideia é que as atrizes absorvam e exteriorizem o que há de masculino e feminino nelas, a procura de um corpo híbrido. Isso também se relaciona ao uso da voz”, conta a dramaturga, que pretende inserir músicas da banda canadense Rush no momento de encenar a peça – Michelle costuma assinar a direção do que escreve para A Má Companhia Provoca.

 

“O teatro é uma oportunidade de civilizar, de abrir um estado temporário de exceção, por isso pretendo escrever textos cada vez mais acessíveis. Quero ser entendida”, diz. Ela também destaca que a discussão sobre gênero, em voga nos dias de hoje, aparece enquanto conteúdo e não como uma imposição temática da parte da autora ou dos próprios personagens.

 

Situada no gênero da comédia dramática, Michelle entende 4 da espécie como uma peça muito bem humorada e não necessariamente associa sua montagem ao teatro do absurdo, como vem sendo encarada sua contribuição às artes cênicas nos últimos anos. “Há o insólito no que monto e eu bebi muito nas águas do teatro do absurdo, mas hoje vejo minha produção em um outro lugar, um lugar mais anárquico”, sugere.

 

Sobre o estranho em 4 da espécie, se sobressai a presença ameaçadora de um leão que espreita a casa onde estão se hospedados os 4 da espécie. “Esse leão representa a disputa do âmbito doméstico, dito da mulher, e outros símbolos que o leão inspira, como uma ameaça que impede de ir pra rua, um medo constante de ser comida à força e o conselho de quem está por perto para que você não vá para o lado de fora”, conta a artista.

 

Sobre a autora

 

Michelle Ferreira é atriz, dramaturga, roteirista e diretora. Formada pela Escola de Arte Dramática, foi integrante do Núcleo de Dramaturgia do CPT, com coordenação de Antunes Filho, por oito anos. Foi duas vezes finalista do Prêmio Luso-Brasileiro de Dramaturgia (2009 com Reality Final e 2011 com Tem alguém que nos odeia). Já teve seus textos encenados por nomes como Cacá Carvalho (EstudoHamlet.com), Hugo Possolo (Riso Nervoso), Mario Bortolotto (Como ser uma pessoa pior), Eric Lenate (Sit Down Drama), José Roberto Jardim (Tem alguém que nos odeia), Isabel Teixeira (Animais na pista) e Maria Maya (Não somos amigas). Escreveu  e dirigiu Os adultos estão na sala e foi indicada ao Prêmio Shell de melhor autora em 2013. Seu trabalho estreia internacionalmente em 2016, na Escócia (There is someone who hates us), com a produção do Teatro Nacional da Escócia (NTS) e direção de Amanda Gaughan no projeto A Play, a Pint and a a Pie.

 

Sinopse curta

 

Quatro pessoas que não se conhecem decidem ir para um chalé escalar uma montanha no feriado do dia dos mortos. O encontro aparentemente cordial se transforma numa intensa e inusitada disputa pelo poder. Tudo aquilo que parece ser, não é. 

 

Serviço

Lançamento de 4 da Espécie – A história do corpo coisa nenhuma de Michelle Ferreira

Editora Patuá / Prefácio de Renato Ferraccini e posfácio de Silvia Gomez

Dia 18 de setembro, terça-feira, às 20 horas, no Teatro e Bar Cemitério de Automóveis.

Endereço: Rua Frei Caneca, 384 – Consolação

 

Workshop Anarcodramaturgia – a palavra bomba e outros atentados

Inscrições abertas no site www.spescoladeteatro.org.br.

Dias 22 e 23 de setembro, sábado e domingo, das 14 às 18h, na SP Escola de Teatro

Endereço: Praça Franklin Roosevelt, 210 – Consolação.

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